Will the end make me whole again?

26 de mai. de 2019

Nas horas seguintes à troca de pele, a aranha está mais vulnerável do que nunca. Seu corpo ainda não tem firmeza o suficiente para andar. É por isso que ela procura locais tranquilos para que sirvam de abrigo durante a troca. Essas trocas ocorrem para que a aranha possa crescer em tamanho, visto que seu exoesqueleto impede que seu corpo cresça sem que o mesmo seja rompido. Por dentro do exoesqueleto, a aranha precisa fazer pressão o suficiente para conseguir quebrá-lo. Depois, precisa contrair os músculos para que as patas consigam sair do exoesqueleto. Após sua saída, ela fica horas imóvel, esperando que o novo exoesqueleto seja forte o suficiente para sustentar seus músculos.

Para crescer, a aranha precisa destruir uma das partes mais importantes do seu corpo: a estrutura que permite que ela possa se movimentar. Ela precisa dizer adeus àquilo que a sustenta, deixar morrer aquilo que, durante muito tempo, foi o que possibilitou que ela sobrevivesse.

Algo está mudando. O ranger das tábuas de madeira, o rolar das pedras e o vento batendo nas árvores tornam evidente que o tempo está passando e já não é mais possível ser o mesmo que se era. A cada instante, uma nova dor. O mundo está desmoronando e encontramo-nos vulneráveis. Não há porquê buscar as respostas lá fora. O mundo chama, está falando conosco. O mundo invade e inunda, gritando, arranhando. Às vezes, o universo pede socorro. Não para ser salvo, mas para ser ouvido. Todos os desastres, as mortes, os maus tratos, as mentes perversas, todas as dores do mundo existem, e elas gritam. Essa tristeza toda, ela quer ser vista. Ela quer ser sentida. Ela precisa ser sentida. Alguém tem que sentir.

Para crescer, alguém precisa destruir uma das partes mais importantes de si: as estruturas que permitem que haja qualquer sensação de certeza. Alguém precisa dar adeus às crenças que promovem sustentação, deixar morrer em si aquilo que, durante muito tempo, foi o que possibilitou sua sobrevivência.

Somente com a completa dissolução é possível alcançar a transformação. Não há o que temer. Há de mudar, sim. O que era não será mais, mas não está tudo perdido. É um ciclo — não é a primeira vez, muito menos a última. Começamos a morrer cedo e não paramos mais. Cada dia, um pouco se esvai. Deve ser assim. Não há motivo para resistir. Há dias em que porções maiores se vão e a dor parece insuportável. O mundo inteiro morde e arranha. Uma ferida recém aberta não pode ser forte como a pele bem regenerada. Está tudo bem. Não existe nada que vale o esforço da manutenção.

Algo está morrendo. Deixe ir.

Quando a vingança deixa de ser sonho e passa a ser necessidade

20 de mai. de 2019

Acredito eu que não sou uma pessoa vingativa, mas eu posso estar errada. A gente tem o costume de esquecer e deixar pra lá as coisas ruins que a gente faz, então posso estar falando besteira. Mas ainda que eu possa ser vingativa, eu gosto de imaginar que não sou e ouso dizer que não compactuo com este tipo de comportamento, muito embora eu ache a agressividade (resposta violenta a um estímulo aversivo) algo de extrema importância para as nossas vidas. Enfim.

Este texto não é sobre uma novela chinesa, mas preciso citá-la pois foi o que me motivou a escrevê-lo. Ashes of Love é um drama chinês baseado em um romance do gênero xiānxiá, o que tecnicamente significa que tem criaturas mágicas imortais (por vezes chamadas de deuses), artes marciais e muita influência do budismo e taoísmo. Para resumir, a história narra o encontro de Jin Mi, filha da Imortal das Flores, com Xu Feng, Imortal do Fogo, e a partir disso surge aquele romance bonito e enrolado que estamos acostumados a ver em dramas. Porém, como todo bom romance, há um triângulo amoroso e quem está atrapalhando que o casal fique junto é Run Yu, o Imortal da Noite, meio-irmão de Xu Feng. Os dois são filhos do Imperador Celestial e, embora Xu Feng seja o mais novo, ele é o herdeiro do trono, visto que é o único filho da Imperatriz Celestial.

Acontece que o Run Yu é um fodido. Ele é a criatura mais desgraçada do drama inteiro. De início, ele parece uma pessoa extremamente agradável, amiga, confiável, entre outras. Run Yu é realmente um exemplo de boa pessoa. Até que ele descobre ter um casamento arranjado com Jin Mi e começa a mexer os pauzinhos para que seu irmão não fique com ela. Episódio vai, episódio vem, e mais desgraça acontece com Run Yu. Já falei que ele é meio-irmão de Xu Feng? Pois então, em meio a todo esse tumulto em relação a Jin Mi, Run Yu é extremamente mal tratado pela Imperatriz Celestial e descobre umas verdades sobre sua mãe biológica. A cada instante, percebe-se Run Yu se tornando cada vez mais fechado, sério e amargo. Passa-se a duvidar de suas verdadeiras intenções com Jin Mi, uma vez que Run Yu se torna uma criatura consumida pelo ódio e desejo de vingança.

Tudo que Run Yu faz em seguida o coloca como vilão do drama, motivo pelo qual a produção é considerada uma obra com final feliz, desde que você esteja torcendo pelo cara certo. Ele é o monstro que matou muita gente, o desgraçado que manipulou todo mundo. Não eram os pais deles. Não eram os outros que cagaram na cabeça dele ao longo dos milênios que ele viveu sendo invisível e solitário. Imagine se fosse.

Em um dado momento, uma personagem fala que as ações de Run Yu são apenas efeito, segundo o princípio da causa e efeito. Trata-se de uma resposta. Não é mais uma questão de prazer, mas uma necessidade. Run Yu precisa se libertar de tudo aquilo que foi feito com ele, mas a única maneira que ele sabe fazer isso é a maneira que ele aprendeu: tomando o controle de tudo, arregaçando com quem estiver em seu caminho. Afinal, seus pais foram os melhores exemplos.

E tudo isso me pôs a pensar que, ainda que eu não concorde com as atitudes do Imortal da Noite, eu simplesmente não consigo culpá-lo. Há apenas uma ou duas vezes em que eu realmente reprovo suas ações, mas de forma geral eu só consigo me identificar. Ao ver Run Yu se vingando de todos aqueles que fizeram mal para ele, eu só consigo sentir que ele está certo, que está tudo bem, que esse é o caminho. E quem me dera eu poder fazer uma coisa dessas!

Eu acredito que todos nós somos diretamente responsáveis pelo curso que nossas vidas levam e devemos nos responsabilizar por aquilo que fazemos de errado. Felizmente, isso é algo que Run Yu também faz, no fim das contas. Mas ainda que os 6 reinos insistam em culpá-lo, eu não consigo. Por mais que ele seja reponsável pelas suas próprias cagadas, eu simplesmente não consigo.

Afinal, deixe uma criatura por séculos abandonada, sem sentir qualquer tipo de carinho ou ter qualquer poder. Depois, introduza uma dose mínima de afeição. Em seguida, mostre que existe a possibilidade da criatura conseguir poder e, supostamente, carinho, de uma maneira rápida, ainda que não ideal ou socialmente aceitável.

Aí está a receita para a criação de um monstro. E, sinceramente, neste momento já não há mais um único ser capaz de apontar um dedo e falar alguma coisa. Nenhum de nós é totalmente vítima, mas ninguém tem o direito de se safar das suas cagadas no final.

Run Yu, obrigada por me mostrar que a vontade de cometer atrocidades está dentro de mim também, e por me lembrar que eu não preciso necessariamente me explicar e me fazer de vítima para que eu mantenha a aparência de uma pessoa digna quando tudo estiver fodido pro meu lado.

Afinal de contas, o mal não existe. Ele é apenas uma invenção para aliviar nossa dor quando as coisas não vão de acordo com o que planejamos. Culpa é um sentimento, não um fato objetivo. A vingança é sempre uma resposta, e a consequência é de quem faz a pergunta.